Transcrição de conversas proferidas ou validadas por Waldo Vieira em tertúlias gravadas em vídeo. Projeto particular de teletertuliana portuguesa, não vinculado a Instituição Conscienciocêntrica.

Waldo Vieira: Tacon

Tacon preparando a tares. Pergunta. Professor, quando o senhor estava no kardecismo com o Chico Xavier, vocês faziam e entrega de várias cestas básicas, principalmente no Natal. Pode-se dizer que isso era uma anti tares? Resposta (WV). Não. Isso é só tacon. Outra coisa: nós, lá na Comunhão Espírita Cristã não fazíamos cesta de Natal – a gente fazia distribuição de três em três meses. Era um departamento que a gente tinha. Eram quatro distribuições por ano. Eu tenho fotografias tiradas pela revista O Cruzeiro, de avião. Em cada distribuição, a gente conseguia distribuir a mais de dezassete mil pessoas. Faziam fila e aquilo (demorava) o dia inteiro – (a distribuição) começava de madrugada e ia até à tarde. O que é que (a gente) dava? Eu não cobrava nada de ninguém mas havia gente abonada que queria me pagar (o atendimento). Eles traziam leitão, carro, camião, piano, vaca, boi… e a gente distribuía isso para o povo. Eu recebi uma vez de presente a primeira Vemaguet de S. Paulo, Brasil. Eu nem entrei dentro dela. Falei assim: - ”Vamos fazer um leilão e com o dinheiro vocês compram macarrão que nós estamos precisando para a próxima distribuição”. (O piano também se transformou em carretas de macarrão vindas de S. Paulo para a gente distribuir). Lá, em Uberaba, havia muita necessidade. A periferia da cidade era muito necessitada, tinha muitos despossuídos. Antes de ter começado este trabalho, eu tinha outro: todas as quartas-feiras nós enchíamos uma camioneta de cestas básicas e levávamos para as famílias na periferia. E eu via-os do ponto de vista médico e do ponto de vista da dieta, do ponto de vista da alimentação. A gente olhava particularmente as crianças. Era muita criança desabrigada e em péssima situação. Agora, às vezes a gente passava aperto. Na periferia, tinha um lugar que era uma espécie de condomínio fechado. Só tinha um portão e o povo vivia ali nuns casebres. Numa dessas nossas excursões, eles me pediram para atender uma pessoa que estava passando mal. Eu entrei numa quarta-feira à noite e eu vi sete pessoas que estavam morrendo devido à cachaça. Eu (chamei) a polícia e descobrimos que o “cara” que era o dono do terreno deixava que o povo tomasse conta da casa e começava a dar-lhes cachaça até eles morrerem. Você vê quando a pessoa que toma cachaça está no fim, porque os órgãos e sistema do corpo vão embora: o pulso fica fininho e a barriga cresce. E eu descobri sete homens, chefes de família, em sete das casas dentro do condomínio. Ninguém tinha visto visto isso, a polícia não conhecia nada disso. (Os que estavam comigo) tinham medo do povo chegar lá para me matar, porque eu tinha que fazer a notificação do processo que eu estava vendo. Com isso, muita gente foi salva. Aquele condomínio tinha mais ou menos cinquenta famílias. Ele ((referência ao proprietário do condomínio)) murou tudo. Vários já tinham morrido e ele ficava com o dinheiro daquele povo. (Tertúlia 0950; 1h:12m). Pergunta. Esses homens morreram? Resposta (WV). Alguns morreram antes de nós chegarmos. Depois que nós chegamos, só aqueles que estavam nas últimas é que a gente não aguentou, mas muita gente se salvou. O “cara” fornecia cachaça para matar os “caras” indiretamente. Uma cachaça mal feita, de qualquer maneira, de alambique todo sujo, estoura o fígado – dá hepatopatia, doença do fígado – e a pessoa vai embora, não tem saída. Havia amigos meus que queriam que eu saísse de Uberaba durante uma temporada, porque eles estavam com medo de vir gente de lá para acabar comigo. A única coisa que eu prometi para eles é que eu não ia voltar lá mais. Nós íamos fazer assistência em outros lugares perto, mas lá, nunca mais eu voltei. Mas a polícia, as autoridades, o delegado... tomaram conta. Pergunta. Mas eram só homens? Resposta (WV). Não. Tinha mulheres e crianças. Todos foram encaminhados. Nós ficamos sabendo depois, que muita gente já tinha morrido, porque o “cara” estava fazendo aquilo de propósito. Até um certo ponto é uma escravatura, do jeito que ainda há hoje, com crianças e esse “negócio” todo. Agora… à base de cachaça, é terrível. O homem era terrível. Ele fazia a pessoa vir das fazendas e tudo o que a pessoa tinha, trazia com ela. A pessoa morria e ele ficava com aquilo tudo (incluindo) documentos, para pagar o tempo que ela estava lá. A pessoa intoxicada, alcoolizada, alcoólatra, não tem mais força para superar aquilo ((referência à hepatopatia)), acaba indo tudo embora. Eu vi isso. Eu chamei o “negócio” de campo de concentração. Na época eu ainda pedi: -”Não vamos por isso no jornal, vamos atender calados porque senão vai criar mais problema e vai ter mais mortes”. Tinha jagunço no meio – jagunços são pessoas profissionais para matança. (Tertúlia 0950; 1h:17m). Pergunta. A sede (era) lá? Resposta (WV). Era mais do que a sede, aquilo era a baratrosfera. Vamos dizer: uma filial da baratrosfera na Terra – um lugar horrível! Foi uma bênção, aquela mulher que foi lá atrás de mim para a gente socorrer o marido dela. Nunca tinha entrado um médico lá dentro porque o “cara” não deixava. Era um campo de concentração mesmo, uma coisa absurda. Depois que consertou tudo, tinha gente que não acreditava no que tinha acontecido. Um problema! Então, você veja, como é que são as coisas de assistência e distribuição. Ali (não houve) só a tacon, ali teve esclarecimento. Você entendeu? (Tertúlia 0950; 1h:19m). Pergunta. Durante alguns anos, você trabalhou com clínica gratuita no atendimento e isso, num momento em que o país não tinha a saúde pública nos moldes que tem hoje. Resposta (WV). As coisas estavam começando... a faculdade começando… em primeiro lugar eu era radiologista da Policlínica Odontológica. Essa foi a primeira que aconteceu em Uberaba para melhorar a região toda. Nós tínhamos 28 consultórios odontológicos. Eu era radiologista disso, era menino, adolescente. Tinha até americano que me ajudou a estudar o “negócio”. E nessa ocasião não tinha muito disso de chumbo no RX, não ((referência a materiais de chumbo para proteção de radiações ionizantes)) – o “negócio” era a distância. Eu comecei trabalhando assim. Eu morava lá, na policlínica. Eu era a única pessoa que morava lá, nem zelador morava lá. Eu é que tinha as chaves, às vezes eu é que fechava os pavilhões todos no fim do dia – às 11:30 da noite. Eu vi muito de perto e conheci o que era miséria – grávidas com as raízes todas podres e infetadas. Em matéria de cirurgia, o que eu fiz mais foi isso, durante esse período de odontologia, para limpar a boca dessas mulheres, que eu tinha muita pena. O nome da cirurgia é alveolotomia. Eu fiz muitas alveolotomias. Às vezes dava para fazer em baixo e em cima, as duas arcadas, às vezes não dava e esperava para fazer a outra no outro dia para tirar tudo aquilo que estava “entregue às baratas”.  Gente que vinha lá de longe e às vezes grávida. Só por aí você vê a necessidade que era. O meu consultório era bem simplão mas eu atendia 95 pessoas por dia. Você vai falar que ninguém atende 95 pessoas por dia, mas não era isso: eu fazia a triagem, atendia os que eu podia e que estavam com necessidade e indicava para os especialistas. E ensinava a plantar, para a pessoa melhorar a alimentação, por causa das crianças. Isso durou pouco, foram alguns anos só porque depois eu desisti. No dia em que passei na frente de uma casa para atender um vizinho e um “cara” estava tocando o cavaquinho com a cadeira em cima das cenouras que eu tinha plantado. Eu disse: -”Não, aqui tem que entrar a educação primeiro. Não adianta eu forçar a barra”. Nunca pude esquecer aquela história: ele tocando cavaquinho com a cadeira em cima (da plantação de cenouras) e pisando, com o povo todo em torno dele, pisando o “negócio” que eu plantei, com um esforço danado. A situação era tão precária que eu dava por exemplo vitaminas e complementos alimentares para as crianças (...) e tinha gente que juntava aqueles remédios, não dava para as crianças e vinham vender para a nossa farmácia. Então, eu e o enfermeiro começámos a marcar os remédios que a gente dava, para acabar com o processo da venda. Era a natureza humana. Olha a pobreza que era! O “cara” via um remédio daqueles e não abria porque (pensava) que ele valia muito dinheiro. Chegava à farmácia e perguntava: -”Quanto custa isto?” Ele queria vender o “negócio” mais barato. Não é incrível, você pensar uma coisa dessas? Você nem calcula o que eu passei – tudo é tacon. Hoje, a situação lá está muito melhor, as faculdades vieram, a medicina andou consertando mais, junto com a odontologia  e isso melhorou muito. (Tertúlia 0950; 1h:28m). Pergunta. Era isso que eu queria entender mais porque eu estou tentando aprofundar a assistência na medicina. Eu trabalho com saúde pública já há quase cinco anos. Resposta (WV). Logo que eu me formei em odontologia, eu entrei na medicina. No segundo ano de medicina, eu formei nove ambulatórios em instituições – uma boa parte deles em centros espíritas. A gente fazia uma farmácia e eu arranjava um académico, junto com um professor médico para atender junto com a gente. Desses nove, eu trabalhei em três, assistindo os outros. Fiz uma porção de investigação com um monte de gente. Era muita gente que precisava de assistência. O “negócio” não era fácil. (Tertúlia 0950; 1h:34m). Pergunta. Hoje em dia ainda tem muita gente que precisa de assistência, mas nas áreas onde tem o programa de saúde na família, por exemplo, você mapeia aquela região e então as pessoas sabem quem está lá e isso facilita o acesso das pessoas. Resposta (WV). Na minha época era pior do ponto de vista geral da deficiência na saúde, mas hoje tem uma coisa pior, que é o tóxico. O tóxico está acabando com o Brasil. No meu caso, o que havia era alcoolismo, mas hoje a cocaína, o crack, mata a pessoa em muito pouco tempo. A pessoa nem chega à meia-idade e morre logo. E às vezes morre, não é por causa do tóxico, é por causa da bala. Quantos jovens não se matam nesta na região da fronteira! (Tertúlia 0950; 1h:35m). Quando eu (WV) deixei Uberaba em 1966 e fui para o Rio (de Janeiro), eu comecei a atender duas favelas, como médico: a favela da Catacumba e a favela da Rocinha. Trabalhei lá muito tempo como médico. Mas chegou um dia em que eu fui visitar uma das casas da favela da Rocinha e vi que as pessoas lá tinham mais eletrodomésticos do que eu em Ipanema. Então, eu disse assim: -”Tem alguma coisa errada aqui”. Então, a mesma coisa que aconteceu em Uberaba, eu vi acontecer no Rio e hoje eu vejo acontecer aqui. Só tem uma saída para isso: educação. Hoje, eu nem falo mais em educação, eu falo em reeducação. Hoje, para fazer educação, tem que primeiro educar a administração do educandário os administradores, os donos da indústria da educação – educar depois o corpo docente – os professores – e por último, educar os alunos. O “negócio” tem que vir de cima para baixo, não tem outra saída, porque piorou tudo no Brasil por causa da falta de educação. A saída que eu vejo é: educar, educar, educar. Eu faço hoje esta tertúlia, a gente hoje tem até esse processo no online, mas a minha consciência é tranquila: o que eu já fiz de tacon na minha vida foi para puder fazer a tares hoje. Eu estou tranquilo dentro de mim, eu paguei o meu pedágio para chegar aqui. (Tertúlia 0950; 1h:36m). Pergunta. Vou deixar mais clara a minha dúvida. Eu fico num questionamento porque ao mesmo tempo em que a gente pensa em facilitar o acesso das pessoas à consulta médica, chega muita gente para mim que não tem exatamente uma necessidade – a pessoa consulta duas ou três vezes na semana, ou todo o mês está lá. Resposta (WV). Porque tem hipocondria. Pergunta. É. Mas se eu facilitar o acesso para esse tipo de pessoas eu fico até conivente com (a dificuldade de acesso) daquelas que necessitam. Resposta (WV). O ideal é você dialogar com a pessoa, (usar) a dialética. Às vezes, você pode chegar até a uma impactoterapia, com jeito. Tem que ter é muita diplomacia para você não receber um tiro na testa. Com o povo aí, você sabe, tem que ter cuidado. Mas o processo é expor o que é mais produtivo, o que é mais vantajoso. Se você chegar a uma pessoa dessas, falar que a “Lei de Gérson” ((expressão que significa levar vantagem em tudo, sem considerar questões éticas)) não tem vantagens (e explicar porquê), às vezes vale a pena. Começa a expor para a mãe, em segundo lugar para o pai e em terceiro lugar para o resto. Se a pessoa é jovem e não tem mais ninguém junto dela, você tem que dar um jeito de arranjar um outro jovem que fale com ela. Se (há entendimento) no horizontal, no vertical ninguém entende nada e eles não querem saber disso. (A pessoa mais nova não respeita a pessoa mais velha que vai falar com ela). Se for um da mesma idade e do mesmo nível – no horizontal – ela vai admitir. Isso é técnica de diálogo. Tem que usar isso, não pode escapar isso, não. Vale a pena esse esforço. Tudo é assistência. Não fica pensando que você está 100% fazendo tacon. Às vezes, você está fazendo tares. Mas é preciso trabalhar mais para você ver os resultados. Eu, por exemplo, pensava que estava sempre fazendo tarefa da consolação e com o tempo vi que não era. Quando começaram a aparecer as novas gerações – «com o povo todo daquilo que já tinha começado na raiz» – você viu que a nova geração apareceu melhor do que a primeira.  Isso já é orientação de esclarecimento. Eu vi isso. As pessoas já tinham outra mentalidade, já tinham começado a mudar. Mudar a mentalidade é a coisa pior que tem. A mudança de temperamento envolve uma porção de coisas que é difícil, mas a gente tem que insistir. Insista, não desista, vai em frente. (Tertúlia 0950; 1h:38m).

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